quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

Novamente, Argentina: o anjo loiro da morte é encarcerado para sempre


A Argentina teve uma ditadura civil-militar sangrenta, de 1976 a 1983. Foram quase 30 mil pessoas assassinadas. Diferentemente do Brasil, não se curvou a leis que, em leitura deturpada, resultariam na falta de punição de torturadores e assassinos do Estado. O povo argentino empurrou, foi além, e os torturadores vão caindo de sua soberba em julgamentos que eles tiveram a dignidade de conceder a seus opositores.

Em 27 de novembro de 2011, em Buenos Aires, um antigo oficial da Marinha, Alfredo Astiz, foi condenado a prisão perpétua por crimes contra a humanidade cometidos durante a ditadura. Ele era um símbolo. Arrogante, frio, torturava por prazer e ensinava a torturar. Gostava de ver mulheres sendo espancadas e estupradas. Dizia-se deus. Era conhecido como o “Anjo Loiro da Morte” e foi considerado culpado de tortura, assassínio e sequestros. Ele infiltrou-se, por exemplo, no grupo Mães da Praça de Maio, fingindo-se parente de uma pessoa desaparecida. Levou à morte várias das pessoas que pensavam consolá-lo pela perda.

Aos 59 anos (completou 60 em 8 de novembro), o antes menino prodígio da tortura e do sadismo é considerado um dos principais responsáveis pela tortura e assassinato de quase 5 mil pessoas na Escola Superior de Mecânica da Armada (Esma), um dos maiores centros de tortura do país vizinho, situado em plena Buenos Aires. Apenas cerca de 150 saíram vivos daquele inferno.

O processo envolvendo Astiz levou à Justiça 16 da Esma. Doze foram condenados pelo Tribunal Federal número 5 a prisão perpétua. Entre eles está Jorge Acosta, “O Tigre”, que argumentou durante o julgamento que “as violações aos direitos humanos são inevitáveis durante uma guerra”. Ele foi um dos criadores dos “voos da morte”, nos quais os prisioneiros, ainda vivos, eram jogados sobre o rio da Prata ou o mar para eliminar vestígios.

Também foram condenados a prisão perpétua os oficiais Oscar Montes, Antonio Pernías, Raúl Scheller, Ricardo Cavallo, Jorge Rádice, Alberto González, Julio César Coronel e Ernesto Weber. Este era chamado de “220” pelos militares pelo prazer que sentia em aplicar essa voltagem nas torturas. Ainda nesse grupo está Alfredo Donda Tigel, que sequestrou o próprio irmão e a cunhada, assassinou-os e ficou com as filhas deles.
Juan Carlos “Lobo” Fotea Daneri foi condenado a 25 anos de prisão. Manuel Tallada recebeu 25 anos; Carlos Capdevilla, que realizou os partos clandestinos na Esma (em geral, as crianças eram dadas para adoção a militares), foi condenado a 20 anos. Um dos mais ferozes torturadores, Juan Antonio “Piranha” Azic, recebeu pena de 18 anos.

Nenhum outro local se tornou tão emblemático da repressão militar argentina como a Esma.
Em 1998, Astiz disse, em entrevista, que era “o melhor homem da Argentina a matar jornalistas e políticos”. Depois do golpe civil-militar, tornou-se um dos membros do grupo 3.3.2, responsável por sequestros, torturas e desaparecimentos da Esma, onde entrara em 1968. “Não lamento nada”, afirmou.

A sala de audiências estava cheia e centenas de pessoas juntaram-se à porta, na rua, alguns com fotografias das vítimas dos homens que estavam a ser julgado. A leitura de cada sentença era aplaudida pela multidão. Quando chegou a vez da decisão sobre Astiz a multidão gritou: “Filho da puta!”. No fim das sentenças, as pessoas cantaram, dançaram e se abraçaram na rua.

“A justiça é a base da democracia”, comentou à AFP Geneviève Jeaningros, sobrinha de uma das duas freiras francesas sequestradas e mortas por Astiz, que foi à Argentina para assistir ao julgamento . “Todos os que deram a sua vida não o fizeram em vão”, afirmou.

Com o fim da ditadura, em 1983, houve processos por crimes contra os direitos humanos contra membros da junta militar, mas os detidos foram depois anistiados e postos em liberdade. A anistia seria depois revista pelo Tribunal Supremo, em 2005, a pedido do então presidente, Nestor Kirchner. Desde então os tribunais condenaram vários dos grandes nomes do regime de terror.

O julgamento da Esma, como ficou conhecido, durou dois anos. Por ali passaram 160 testemunhas, incluindo 79 sobreviventes que relataram as torturas que sofreram. No final, formaram-se 86 acusações por crimes contra a humanidade, como sequestros, torturas, assassinatos, além de roubo de bebês e ocultamente da identidades dessas crianças. A estimativa é que, na Esma, tenham nascido entre 150 e 250 crianças, retiradas suas mães, presas políticas posteriormente assassinadas.

Os militares da Esma também faziam negócios espúrios como venda de tudo o que encontrassem nas casas das pessoas sequestradas e dos imóveis do presos pela imobiliária criada pelo almirante Emilio Massera, que participou da primeira junta militar.

Nós, brasileiros, que não conseguimos sequer ainda acesso a documentos sobre a ditadura, olhamos envergonhados para a Argentina.

Com informações do jornal O Público, de Lisboa, e do blog de Ariel Palacios.